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quarta-feira, 14 de abril de 2010

Rock and Roll na Aruanda: o convite é a imaginação

Quando a noite chegae as estrelas lembram o teu olharsão as luzes dos meus sonhosque voltam a esvoaçarSe eu tivesse teu olhar poderia ver a luz e nada mais fariasó pra ti vivia mesmo que o mundopare de girar Ivo Rodrigues Jr. Assistir Blade-Runner pode ser um bom modo de se compreender a dicotomia entre o corpo e o espírito. Quando se tece reflexões acerca da continuidade da vida nos moldes dos filmes hollywoodianos como Ghost ou Espíritos, adquire-se o direito de acreditar na eternidade da vida. Nos filmes Amor além da vida ou Constantine percebe-se que os vivos podem adentrar no mundo dos mortos, conduzidos, no mais das vezes, pelo amor.É permitido, portanto, adentrar o universo do imaginário e ver Ivo Rodrigues Júnior, chegando numa espécie de Central Park brasileiro, reconhecido por uns e aclamado por tantos. Esta seria, certamente, uma grande festa no céu, uma daquelas festas onde sapo não entra e o tom emerge da cantoria juvenil; o caráter lúdico das fábulas invoca a participação na cena. E a melodia só pode ser a do Rock and Roll. Pode ser aquela coisa mais caipira pra esquentar e tentar compreender determinadas raízes culturais. Aparecem os amigos, emocionados pelo reencontro e já na entrada, alguns fãs.O reconhecimento, quando sincero, tem a transparência que, no corpo físico, corresponde ao olhar. Neste parque encantado se aprende a ver com o corpo, mas com outro corpo, mesmo porque ainda resta alguma coisa de fisicalidade, uma determinada energia conjuntiva que mantém a coerência interior. Morre a grande voz do rock curitibano, ele pega A Chave guardada por anos e abre a porta para o outro lado. Para quem acredita numa energia maior do que esta da Terra, pode até pensar que ele canta Valeu. Logo de primeira. Ele sabe o que está acontecendo, mas não lembra muito bem por onde começar. Calmo, pede pra encontrar Jimi Hendrix, não liga muito ao ver Michael Jackson dançar. Mesmo aí ainda vislumbra alguns fãs, e disso ele parece gostar, mesmo já demonstrando a pressa em desvendar seu prêmio mortal. Reconhece Leminski que já está lá mais tempo e circula melhor no local. Prevalece uma ordem incompreensível para os moldes da razão, mas uma análise das percepções afetivas parece criar outro sentido. Concordar com o Poeta Maldito pode ser, contudo, a decisão mais sábia a se tomar. Perceber, na imagem de Leminski, a certeza de se sentir à vontade e descansar no local. Ivão encontra Paulo Leminski na hora do desencarne, ou melhor, o polaco não deixaria de estar lá, esperando para levar o parceiro para um mundo melhor.Mas Ivo tem que descansar, a viagem foi longa, e deve ser bom dormir no céu. Ao tentar pegar no sono, começa a ouvir melodias: um rock romântico, uma música lenta, uma canção de ninar. Joan Baez canta na festa, Janis diz que espera ele ficar mais forte para conversar. Ivo ouve meio sonolento que John Lennon mandou avisar que vai aparecer pra visitar. Os índios, imateriais para a percepção do cantor, sorriem satisfeitos porque ele gostou do lugar. O exército de Ogum, em sua reconhecida Blindagem não deixa nada atrapalhar. Algumas fãs, filhas de Oxum, pedem licença para sair da cachoeira e homenagear o cantor. A vibração é muito boa. Mas Ivo ainda quer dormir, num costume tipicamente brasileiro invoca Oxalá na pessoa de Jesus Cristo. Amanhã é dia de sol, e o aprendizado vai ser pedreira : a consciência, quando pensada como um atributo de Xangô, não é um elemento fácil de lidar. As crises do mundo contemporâneo tornam mais complexos os conceitos de valor, mas também, percebe Ivão, não há pressa, o vento que sopra traz a saudade do mar, o salgado da vida que nos acolhe e faz sonhar. Sente-se bem em estar ali, quer conversar com os amigos amanhã, quer compreender, também, qual o saldo desta encarnação. A morte, entre outras coisas representa a distância de si mesmo. Pode-se ver sua própria vida acontecer, e aí se completa o ciclo do pensamento; retornamos à metáfora da imagem filmada para a elaboração de conceitos sobre a vida após a morte. Amanhã, e sabe-se que este dado é relativo no mundo espiritual, Ivo pode rever sua vida como num filme, consegue até assistir as cenas que se referem à sua vida mesmo não estando presente.O enigma continua sendo a Aruanda: conceito próximo de céu no sincretismo cristão pode-se imaginá-la como um lugar de preferência, algo que se avizinha do conceito de paraíso, que difere de um para outro, mas que, simultaneamente, encontra características comuns. Na Aruanda do mundo pop, tem que ter muita música boa. Raul Seixas, Tim Maia, se não conseguirmos efetuar uma abstração geográfica, pelo menos de bons brasileiros já está cheio o lugar. Mas a atmosfera é leve, respira-se melhor. De manhã Ivo verá as árvores, vai entender melhor o lugar. Vão lhe contar tudo que fez de bom e não sabia, vão lhe explicar o poder da canção e o lugar para onde vai quem sabe fazer poesia. Aos poucos, ele retoma o contato com os elementos da natureza, verá os caboclos, entenderá que a língua, nesse corpo, é a telepatia.Este, todavia, é um trabalho para o mundo dos espíritos, que continua se imaginando para muito além do que qualquer criatividade humana possa suspeitar. A imaginação é o elemento que contribui majoritariamente para o desenvolvimento tanto da tecnologia quanto da arte: na tentativa de ampliar a capacidade de entendimento da força vital, criam-se usinas, bombas mortíferas e paraísos virtuais. Se, por um lado, o progresso material parece caminhar rumo ao caos, a consciência da imaterialidade se torna mais pontual e permeia o universo da cibernética criando distintos conceitos de matéria. A imaginação, coletivizada pelos processos da fé, é parente próxima da arte, é a capacidade de criar lugares, pessoas, situações. Ao mesmo tempo, ela é a impossibilidade de sua completude, isto é, de se definir os limites do criar. Evidenciado o fato de que o imaginário tem sua própria fonte e que dele extraem-se pequenos fragmentos que criam significados sem esgotar sua potência, está estabelecido, simultaneamente, o critério do além-vida: do além daquilo que se consegue imaginar.A Aruanda, em sua polissemia imagética, é muito mais do que se possa sonhar. Nela, certamente, a voz de Ivo, vai ter o seu lugar.
Cristina Mendes, abril de 2010.

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