O para-brisa do carro do bacharel em Direito e cartorário Fernando Guimarães, 73 anos, vale por sua carteira de identidade. Ali está lavrado: “Sou filho de Jorge, saravá”. O homem foi sempre assim – um anarquista, dos para-brisas ao resto da carroceria. Virou apóstata quando era guri de suspensórios e ainda conhecido como filho do grande jornalista Acyr Guimarães, um dos pioneiros desta Gazeta do Povo. Detalhe: capitulou a fé às vésperas da Primeira Comunhão. Gostou. Aos 20, com a naturalidade de quem ia às matinês do Thalia, enveredou-se para o espiritismo, debaixo do olho vesgo da família. E passava dos 40 quando rodopiou no centro Edmundo Ferro do Pilarzinho, de onde só saiu para abrir o seu próprio espaço – o Pai Maneco, uma chácara de 8 mil metros quadrados na Estrada Nova de Colombo. Ali, descansou na paz lá de Aruanda, uê. Sequer tem problemas com a vizinhança: o terreiro é colado de muro no Cemitério Santa Cândida. E lá se vão 20 e tantos anos. Nesse tempo, o Pai Maneco se transformou num endereço cult da capital, onde artistas, intelectuais e principalmente universitários dividem a tenda com pobres de Marré e herdeiros do quilombo de Zumbi. É só olhar a pilha de sapatos para ver – são crocks, all stars, scarpins e rasteirinhas compradas nos atacados da Pedro Ivo, todos democraticamente num canto. Não verás um lugar como esse. Saravá. A moçada, diz-se, chega ali atraída por dois itens do kit básico da umbanda: a liberdade de expressão e a música de bradar os céus. A roda de tambores do Pai Maneco é tão animada que deve levar muita gente a pedir ao santo, de lambujem, que o próximo carnaval fique a cargo da casa. Como são 2 mil visitantes por semana, noves fora, as linhas do além devem estar congestionadas “Ai de ti Sapucaí.” Mas os músicos dali não são só bambas. São malabaristas. Sapecam de tudo um pouco, incluindo um ponto “que veio” do poeta Paulo Leminski. O hit “Pomba Gira Blues”, de Anderson Lima e Gabriel Teixeira, à moda Blindagem, esbanja suingue com a letra que fala de macumba e da “moça bonita”, seguida de refrão maneiro: “Me acende uma vela, farofa amarela, com o nome dela...” Claro, o Pai Maneco está no Twitter. E o site da instituição tem cerca de 10 mil visitas mês. Quando a Cultura Afro-brasileira for, aruê, disciplina juramentada, muito professor vai encontrar ali o conteúdo de que precisa – da biografia dos orixás ao significado de palavras gostosas feito doce. Repita comigo: babalorixá, alguidá, juremá, patuá, sarabumba... Foi no site, aliás, que dia desses Fernando atiçou os espíritos que rondam o terreiro e adjacências, do Ogum das Águas ao Cigana Soraya. Num texto escrito a navalha, o babalaô protestou contra a violência das encruzilhadas da vida. Motivo: em 25 de outubro, depois de uma partida de futebol, o estudante João Henrique Mendes Viana acabou atropelado e morto, vítima da guerra das torcidas. A mensagem abalou geral. O local, até então uma espécie de república hippie com passe livre, começou a se transformar numa laboratório de humanidade. Pipocaram e-mails de fiéis dispostos a fazer giras que façam o mundo girar. São pedagogos querendo alfabetizar, profissionais de saúde pondo já o avental branco por cima das saias rodadas. Tem quem se habilite a ensinar como se faz um currículo. Emprego, sabe cumé, tá difícil até para o Caboclo. Pois que fiquem à vontade. Fernando Guimarães segue na rotina. Às segundas-feiras, toma banho de ervas e faz jejum. À noite, recebe o Preto Velho. De terça em diante, prepara-se para se virar em três: logo logo vai ter contraturno no estabelecimento, a quem interessar possa. Mas alto lá, sempre à moda: sem governo e com fúria de atabaques.
O Conselho Mediúnico do Brasil calcula que o Paraná tem 25 mil terreiros – 7 mil só em Curitiba. O Pai Maneco é único entre muitos
Vem de Aruanda, uê, pra Curitiba, uá
publicado em 04/12/2009
José C. Fernadespublicado em 04/12/2009
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Foto: Lucília Guimarães
Arte: Felipe Lima
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