GEOCOUNTER

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

PARTE II


Enquanto isso se fez debaixo dos sólidos estatutos da escravidão, não houve problema. Depois, porém, o povo trabalhador começou a dar trabalho, porque tinha de ser convencido na lei ou na marra, de que seu reino não era para agora, que ele verdadeiramente não podia nem precisava comer hoje. Porém o que ele não come hoje, comerá acrescido amanhã. Porque só acumulando agora, sem nada desperdiçar comendo, se poderá progredir amanhã e sempre. O povão, hoje como ontem, sempre andou muito desconfiado de que jamais comerá depois de amanhã o feijão que deixou de comer anteontem. Mas as classes dominantes e seus competentes auxiliares, aí estão para convencer a todos – com pesquisas, programas e promoções – de que o importante é exportar, de que é indispensável e patriótico ter paciência, esperem um pouco, não sejam imediatistas. O bolo precisa crescer; sem um bolo maior – nos dizem o Delfim lá de Paris e o daqui – sem um bolo acrescido, este país estará perdido. É preciso um bolo respeitável, é indispensável uma poupança ponderável, uma acumulação milagrosa para que depois se faça, amanhã, prodigiosamente, a distribuição.
Bem, esta classe dominante promotora da prosperidade restrita e do progresso contido, realizou verdadeiras façanhas com sua extraordinária habilidade. A primeira foi a própria Independência do Brasil, que se deu, de fato, antes de qualquer outra na América Latina, pois ocorreu no momento em que Napoleão enxotava a família real de Portugal. Com ela saem de Lisboa 15.000 fâmulos. Imaginem só o que representou isto como empreendimento? Não falo de epopéia de transladar esta multidão de gentes para além-mar, - afinal, mais negros se importava todo ano. Falo da invasão do Brasil por 15.000 pessoas das famílias nobres de Portugal. Foi como refundar o país, pelo menos o país dominante.
Com eles nos vinha, de graça, toda aquela secular sabedoria política lusitana de viver e sobreviver ao lado dos espanhóis, sem conviver nem brigar com eles. Toda aquela sagacidade burocrática, toda aquela cobiça senhorial com seu espantoso apetite de enricar e de mandar. Portugal, em sua generosidade, nos legava, na hora do declínio, sua nobreza mais nobre. Aquela cujo luxo já estávamos habituados a pagar, para ela aqui continuar regendo uma sociedade confortável! para si própria como o fora o velho reino, e até mais próspera.
O resultado imediato desta transladação da sabedoria classista portuguesa foi a capacidade, prontamente revelada, pela velha classe dominante – agora nova e nossa – em episódios fundamentais. Primeiro o de resguardar a unidade nacional que foi o seu grande feito. Tanto mais em relação ao que sucedeu à América Espanhola que, sem-rei-nem-lei se balcanizou rapidamente. O Brasil, que estava também dividido em regiões e administrações coloniais igualmente diferenciadas, conseguiu, graças a essa sabedoria, preservar sua unidade para surgir ao mundo com as dimensões gigantescas de que tanto nos orgulhamos hoje.
A outra façanha da velha classe, foi sua extraordinária capacidade de enfrentar e vencer todas as revoluções sociais que se desencadearam no país. Essa eficiência repressiva lhes permitia esmagar todos os que reclamavam o alargamento das bases da sociedade, para que mais gente participasse do produto do trabalho e, assim, reafirmar e consolidar sua hegemonia. Posteriormente, coroaram tal feito com outro ainda maior, que foi o de escrever a história dessas lutas sociais como se elas fossem motins.
Recentemente descobrimos, outra vez assustados – desta vez graças às perquirições de José Honório – que o Brasil não é tão cordial como quereria o nosso querido Sérgio. Durante o período das revoltas sociais anteriores e seguintes à Independência, morreram no Brasil mais de 50 mil pessoas, inclusive uns sete padres enforcados. O certo é que nossos 50 mil mortos são muitos mais mortos do que todos que morreram nas lutas de independência da América Espanhola, tidas como das mais cruentas da história. Os nossos, porém, foram surrupiados da história oficial das lutas sociais por serem vítimas de meros motins, revoltas e levantes e, como tal, não merecem entrar na crônica historiográfica séria da sabedoria classista.
Além destas grandes façanhas, nossa classe dominante acometeu tarefas gigantescas com uma sabedoria crescente, que eu tenho o dever de assinalar nesta louvação. Façanha sobremodo admirável, foi a nossa Lei de Terras, aprovada em 1850, quer dizer, 10 anos antes da América do Norte estatuir o homestead, que é a lei de terras lá deles. A lei brasileira não só foi anterior, como muito mais sábia. Sua sagacidade se revela inteira na diferença de conteúdo social com respeito à legislação da América do Norte, bem demonstrativo da capacidade da nossa classe dominante para formular e instituir a racionalidade que mais convém à imposição de seus altos interesses. A classe dominante brasileira inscreve na Lei de Terras um juízo muito simples: a forma normal de obtenção da prioridade é a compra. Se você quer ser proprietário, deve comprar suas terras do Estado ou de quem quer que seja, que as possua a título legítimo. Comprar! É certo que estabelece generosamente uma exceção carterial: o chamado usucapião. Se você puder provar, diante do escrivão competente, que ocupou continuadamente, por 10 ou 20 anos, um pedaço de terra, talvez consiga que o cartório o registre como de sua propriedade legítima. Como nenhum caboclo vai encontrar esse cartório, quase ninguém registrou jamais terra nenhuma por esta via. Em conseqüência, a boa terra não se dispersou e todas as terras alcançadas pelas fronteiras da civilização, foram competentemente apropriadas pelos antigos proprietários que, aquinhoados, puderam fazer de seus filhos e netos outros tantos fazendeiros latifundiários.

Foi assim, brilhantemente, que a nossa classe dominante conseguiu duas coisas básicas: se assegurou a propriedade monopolística da terra para suas empresas agrárias, e assegurou que a população trabalharia docilmente para ela, porque só podia sair de uma fazenda para cair em outra fazenda igual, uma vez que em lugar nenhum conseguiria terras para ocupar e fazer suas pelo trabalho. A classe dominante norte-americana, menos previdente e quiçá mais ingênua, estabeleceu que a forma normal de obtenção de propriedade rural era a posse e a ocupação das terras por quem fosse para o Oeste – como se vê nos filmes de faroeste. Qualquer pioneiro podia demarcar cento e tantos acres e ali se instalar com a família, porque só o fato de morar e trabalhar a terra fazia propriedade sua. O resultado foi que lá multiplicou um imenso sistema de pequenas e médias propriedades que criou e generalizou para milhões de modestos granjeiros uma prosperidade geral. Geral mas medíocre, porque trabalhadas por seus próprios donos, sem nenhuma possibilidade de edificar Casas-grandes & Senzalas grandiosas como as nossas. É notório que aqui foram melhor preservados os interesses da classe dominante que graças à sua previdência, pôde viver e legar com prosperidade e exuberância. Em conseqüência, os ricos daqui vivem uma vida muito mais rica do que os ricos de lá, comendo melhor, servidos por uma famulagem mais ampla e carinhosa. Como se vê, tudo foi feito com muito mais sabedoria, prevendo-se até a invenção da mucama que nos amamentaria de leite e de ternura. O alto estilo da classe dominante brasileira só se revela, porém, em toda a sua astúcia na questão da escravidão. A Revolução Industrial que vinha desabrochando trazia como novidade maior tornar inútil, obsoleto, o trabalho muscular como fonte energética. A civilização já não precisava mais se basear no músculo de asnos e de homens. Agora tinha o carvão, que podia queimar para dar energia, depois viriam a eletricidade e, mais tarde, o petróleo. Isso é o que a Revolução Industrial deu ao mundo. Mas os senhores brasileiros, sabiamente, ponderaram: - Não! Não é possível, com tanto negro à toa aqui e na África, podendo trabalhar para nós, e assim, ser catequizado e salvo, seria uma maldade trocá-los por carvão e petróleo. Dito e feito, o Brasil conseguiu estender tanto o regime escravocrata, que foi o último país do mundo a abolir a escravidão.

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